quarta-feira, 17 de junho de 2015

Crônicas do Frio (Dia 17) - O Ranger dos Dentes

O Ranger dos Dentes


A espuma fumegante gira no sentido horário na superfície do líquido preto dentro da xícara; o aroma inebriante da cafeína estimula todos os meus sentidos. O vidro líquido e negro reflete a luz que incide do teto transformando meu prazer num espelho. Me vejo. Minha imagem destruída. A espiral é contínua, mas gradativamente perde a velocidade – espalhando minúsculas bolhas que, sozinhas, não suportam o inferno daquela bebida e estouram assim que abandonam a unidade. Aproximo aquele hálito quente do nariz e experimento a sensação de ter uma fonte termal de energia única e exclusivamente minha. Sorvo. Sinto a ponta da língua incendiar. Inflama a boca, garganta e estômago. Espiro ar quente provocando o frio do lugar e, condensado (coitado!), esfumaça em espirais, ameaçando seu gêmeo resfriado com um ataque –. Mas logo adere ao abraço gélido e toca meu rosto (evitando apenas aproximar-se do café). Levanto o olhar. Acompanho o vapor até etéreo ele virar... Observo um ponto perdido no teto de madeira.

É foda! Deveria estar tomando tequila. Ouço minha voz escapando dos meus pensamentos.

Não dessa vez. Prefiro a sobriedade. Mereço. É de olhos bem abertos que devo pagar. Volto rapidamente a lançar olhares de soslaio para ver se alguém percebe. Só a mesma senhora de sempre e ela sorri timidamente quando descoberta. Mas dessa vez, ah! dessa vez tudo é diferente.

Enclausuro minhas fontes de distração na parte de trás das minhas pálpebras e aspiro mais uma vez o amargo e perfumado... Devaneio.

Restaurante, sorriso, conversa, mãos. Café. Convite, jantar, olhares, beijo. Café. Sala, filme, abraço, quarto, sexo. Café. Viagens, memórias, desejo, amor. Café. Músicas, frio, brincadeiras, intimidades. Café. Livros, jogos, cinema, sonhos. Café. Restaurante, suspense, xícara, anel. Café. Casamento, núpcias, Veneza, fascínio. Café. Rotina, trabalho, distância, brigas. Café. Reconciliação, perdão, presentes, cúmplices. Café. Mesmice, promoção, desconhecidos, solidão. Café. Desemprego, frustração, bar, ressaca. Café. Discussão, incompreensão, caminhada, arrependimento. Café. Retorno, quarto, traição, xícara (ao chão). Café. Revolta, indignação, vingança, faca (enterrada no coração). (...)

Abro os olhos a ranger os dentes. Sinto um pedaço da minha alma deslizar desde uma das portas que levam a ela ate o canto da minha boca. Salgada. 
Agentes da lei inabaláveis à minha frente. Digo "sim" ao ouvir meu nome. Peço apenas um instante.
Termino o último gole de café e deito no fundo do recipiente a aliança de amor que morreu de fome.

Hora de pagar a conta.


#PHpoemaday

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