sábado, 5 de dezembro de 2015

Crônicas do Frio II (05) - O Pianista


Für Elise


Pupilas sugam negrume, anseiam luz, quarto escuro... 

Desejam cores, pulso lá fora (em outro quarto).
Íris estremecem. 
Uma onda de volúpia melancólica e o esôfago sente.

Aspir... [îîîîîîîsss] 
Expir... [fsssssîîîî]

[pän... ♪] 

Som desfila, segue e definha num mi agoniante, retumbante entre as quatro paredes...

[nån... nän... nån... nän... nån... nän... ♫] 
Lábio encerrado entre os dentes, escarlate e salgado. 
Sustenidos rés respondem aos mis tentando gritar à Für Elise (tão pobre)...

[tän, nan, dan, dån... ♪] 
Um apelo de si, resquício de dor por ela... 
Agora o quarto eram sons, ondas, cadência, ritmo.

Mão esquerda aracnídea.
Movimentos alongados e precisos, encanto.
Mão direita ferina.
Movimentos rápidos e impulsivos, expulsando.

"Fraude...", vinha e retumbava em toda sua existência.

Mais sol, mais dó... Mais acordes em lá menor. 
Dentes trincados, olhos no enquadro da janela. 
Uma iluminação destoante invade o recinto, pupila recolhe feliz, rosto e suor. 
Quantas horas? Já nem sabe mais.

[nån... nän... nån... nän... nån... nän... ♫] 
Mais uma vez... E os dedos sagram clamando por Elise, nada pobre. 
Não se ouve o som, mas a luz tímida e fugaz revela o belo tom de vermelho escorrendo do instrumento e tocando os insensíveis. 
Sem dó, sem sol. Sal, talvez.

"Fraude." Como? Canção é coração e não só partitura!

Vislumbrava outro enquadro. Um piano de calda 
[nån, nän, nån... ♪] 
e Elise, provavelmente gritava.
Pela segunda janela, o pianista, invadia mais um espaço seu, com a clave de sol - que ele jamais soube o que era - orquestrando-a.
As teclas tocadas, com certeza desconexas 
[nån, nän, nån... ♫] 
pelo convite do senhor clássico ao improvável assento.

"Fraude!" Aquele ritmo... Cadenciado, frequente. Ah, Elise!

[*Tiempf*] 
Seu rosto é chicoteado. 
Uma corda o acerta, o aço corta timidamente sua face. 
O som cessa.

Fita mais uma vez a foto do casamento lançada ao chão... 
A música cantada, sem técnica; apenas coração. 
No apartamento em frente um murmúrio, talvez gemido...

A luz artificial invade o quarto inundando-o. 
Violão no colo, garrafa de vinho em solo. 
Calibre 38 ao alcance da mão. 
O semblante decidido...

Fraude?
Für Elise
.



#PHPoemaday

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